Dr. Friederike Landau é atualmente bolsista de pós-doutorado no Departamento de Geografia da Simon Fraser University, Vancouver. Seus interesses de pesquisa giram em torno da política urbana e teoria espacial, assim como modos de mobilização política e crítica institucional (especialmente ativismo liderado por artistas e museus). Em 2019, seu livro Agonistic Articulations in the ‘Creative’ City – On New Actors and Activism in Berlin’s Cultural Politics (em português Articulações Agonísticas na Cidade “Criativa” – Sobre Novos Atores e Ativismo na Política Cultural de Berlim) foi publicado pela editora britânica Routhledge (Sociologia Política). www.friederikelandau.com
ME: Você pode me contar um pouco sobre como foi sua entrada em um campo de pesquisa tão interdisciplinar?
FL: Para mim tem algo a ver com a própria natureza interdisciplinar do meu histórico, o que me fez eleger um projeto de PhD[1] tão interdisciplinar. Eu comecei estudando ciência política e então mudei para filosofia política, eu estava interessada em filosofia feminista. Quando vim para Berlim, eu não segui na academia em princípio mas comecei a trabalhar em tempo integral em uma agência de consultoria estratégica. Nós acompanhamos o setor público e empresas em seu trabalho em rede com o campo cultural. E esse foi também meu ponto de entrada neste campo, eu era recém chegada na cidade e estava trabalhando nesta consultoria incrível porque estávamos percorrendo toda a cidade, indo a todo tipo de instituição cultural e eventos. E muito cedo (risada) me dei conta quão controversos alguns artistas são, tinha com frequência muita frustração ou raiva dirigida à administração cultural. E então, em 2013, esse novo grupo liderado por artistas estava sempre no radar, mandando e-mails ou fazendo contato pelo Facebook, e eles estavam organizando um protesto. Mais tarde este grupo veio a ser o estudo de caso de meu PhD.
ME: Essa é a KFS, certo?
FL: Sim, essa é a Koalition der Freien Szene (Coalizão da Cena Independente), isso. E, no começo, eu nem queria estudá-los porque senti: “Oh, essa é só uma organização voltada para o lobby”. E aí, o que a dissertação veio a ser, é uma questão de explorar novos modos de participação política e representação, com um desenho interdisciplinar em sociologia urbana e teoria política. Então, eu sou treinada como uma cientista política ou filósofa, estou agora no campo da sociologia, mas é também uma questão geográfica sobre como artistas modificam a espacialidade a partir da perspectiva interdisciplinar. Pode ser difícil encontrar um lugar na academia porque algumas pessoas são do tipo: “Nós não te conhecemos, você não publicou em nossos periódicos pelos últimos 10 anos” e eu pensaria: “Eu sei, mas tenho um estudo de caso interessante aqui”. Mas essa não é a forma como algumas partes da academia pensam. Mas para meu projeto acredito que tenha sido bom porque eu estava introduzindo tantas literaturas e pensadores. E eu também apresentei o trabalho em conferências, onde muita gente foi surpreendida positivamente e apreciou a abordagem holística.
ME: Você tem outras ocupações além de pesquisadora?
FL: Sim, eu estive ensinando no ano passado na Universidade de Ciências Aplicadas em Erfurt, no Departamento de Planejamento Urbano, propondo olhar primeiro para as pessoas na cidade, porque planejadores urbanos se importam com infraestrutura e o ambiente construído. Eu era um pouco exótica naquele departamento, mas foi muito interessante porque eu pude desenhar meus próprios cursos. Então foi isso que estive fazendo e voltarei a ensinar no outono. E, depois do meu PhD, eu também fui contratada para uma consultoria pelo Senado Cultural de Berlim. Porque eu estive no radar das pessoas, realizando entrevistas tanto com ativistas da Koalition der Freien Szene quanto com legisladores que eram parte do processo que envolvia a distribuição do imposto municipal. [2] Então, alguns dos administradores sabiam que havia um interesse acadêmico neste processo colaborativo de elaboração de políticas e eles me pediram, depois que terminei meu PhD, se eu poderia temporariamente acompanhar um de seus processos de mudança como um tipo de conselheira acadêmica.
ME: E como foi?
FL: É muito interessante porque, obviamente, quando você ainda está pesquisando e tentando acumular tanta informação quanto é possível para depois analisar os dados, está em uma posição diferente do que quando é parte da tentativa de mudar algo. Apesar de eu ter me mantido relativamente fora, porque eu não era uma funcionária (permanente). Assim, quando você está dando uma consultoria, você necessariamente introduz algo de sua própria perspectiva do que você acha que precisa ser feito e do que precisa mudar, certo? Esta é provavelmente, em alguma extensão, o porquê deles te contratarem, para apontar novas perspectivas. E aí é interessante ver a temporalidade de como uma administração trabalha. Eu geralmente penso que a administração ou burocracia é uma lugar excitante para fazer mudanças na sociedade, então por isso às vezes eu pensava: “Talvez eu devesse virar uma burocrata mas numa versão criativa e radical.” Mas ao longo da consultoria eu percebi que os processos administrativos funcionam diferente dos acadêmicos.
ME: Além da pesquisa acadêmica e seu trabalho com o IFSE (Institute for Strategy Development) em que outros contextos você pesquisa?
FL: Além da minha dissertação, trabalhei em diversos projetos colaborativos. Por exemplo, eu e minha supervisora canadense do PhD fomos juntas para Leipzig no último verão, onde ficamos por duas semanas, e olhamos para o espaço de arte Spinnerei, em especial para sua dinâmica interna, como eles se inseriam na fábrica urbana e como eles mudaram as políticas culturais locais de Leipzig. [3] Sempre que encontro acadêmicos teoricamente interessados em fenômenos similares ou que têm interesse em estudos de caso similares, simplesmente acontece a união de forças para trabalhar juntos em publicações. Também trabalhei com um colega que tinha a mesma supervisora, éramos como irmão e irmã na Academia naquele período. [4] E teve um outro que trabalhava no âmbito das indústrias criativas de Berlim. [5] Às vezes existe rivalidade e tensão entre a “cultura-cultura” e a “cultura das indústrias criativas”, então tentamos fundir nossas visões empíricas destes dois campos para perguntar: “Como ambos os modos de produção cultural, no sentido mais estreito do termo “produção”, e as indústrias cultural e criativa, no sentido mais amplo destes termos, contribuem para que Berlim seja uma cidade criativa?
ME: Ouvi dizer que Leipzig tem uma cena de arte local quente.
FL: Sim. Percebemos que já havia uma pequena vigilância da academia no âmbito internacional e de países que falam inglês, então estávamos tentando entrar neste campo e introduzir o caso do Spinnerei de Leipzig. É um caso interessante em termos de como fazer uma zona criativa transbordar para a vizinhança e a cidade para facilitar que outras iniciativas culturais estabeleçam-se no entorno.
ME: Voltando para Berlim, quais são as lacunas que a cena de arte independente preenche dentro do sistema de arte hoje?
FL: Sim. Então, por exemplo, os project spaces (algo como “espaços de projeto”), Projekträume em alemão, têm uma função muito importante de preencher a lacuna entre o mercado da arte e galerias de arte e as instituições públicas, como museus e acervos.[6] Project spaces são como centros liderados por artistas, que é como eles chamam na América do Norte, com pouca hierarquia entre artistas, exibindo nestes espaços, que você também falou sobre em seu livro, onde jovens artistas encontram um caminho fácil para exibir e organizar exposições de seu próprio trabalho. Tem bastante rotatividade de exibições, então muita arte é mostrada. Estes project spaces emergiram e se coletivizaram em 2009 na rede chamada Netzwerk Freier Berliner Projekträume und -Initiativen (Rede de Project Spaces Independentes e Iniciativas de Berlim). E porque eles vieram juntos e reuniram suas situações precárias comuns, eles estão desempenhando esta função de preencher lacunas tanto no âmbito político quanto na comunidade de artistas, que precisam de mais oportunidades para exibirem seus trabalhos. Porque estes espaços estão lá e espalhados por toda a cidade. No âmbito político, eles levantam a voz para dizer: “Nós precisamos de suporte estrutural na cidade para manter estes espaços porque são neles que muitos dos artistas que vivem em Berlim apresentam suas primeiras exibições e têm sua primeira aparição pública”. Project Spaces são muito importantes como solo nutritivo para artistas decolarem e talvez traçarem uma carreira mais comercial, se desejam isso. Mas é uma porta de entrada no mundo da arte. E a Netzwerk Freier Berliner Projekträume und –Initiativen tem sido muito ativa. Eles também se juntaram à Koalition der Freien Szene como um dos posicionamentos. Então a Koalition der Freien Szene é transdisciplinar – incluindo jazz, poesia e literatura, música, artes visuais, artes cênicas, dança, produção cultural e os project spaces. Então eles juntaram forças com toda a cena independente, mas aí eles também passaram a ser mais ou menos específicos quanto a um project space ter algo a ver com as artes visuais ou com o formato de exposição das artes visuais. Poderia ter algo a ver com som ou performance…mas a questão interdisciplinar é complicada para os project spaces porque eles lançaram uma definição do que é um project space. Então eles elegeram 4 critérios, mas tem algo como um paradoxo sobre definir seu próprio entendimento da transdisciplinaridade de dentro das artes visuais, porque se o espaço dedica-se somente à música ou à dança, ele não é um project space de acordo com a definição deles.
ME: No Brasil, durante os últimos anos, as galerias comerciais, feiras e instituições começaram a reproduzir formatos e proposições frequentemente utilizados pelas iniciativas da cena de arte independente. Eu ouvi falar desta galeria comercial aqui em Berlim que tem um “laboratório” e eles o chamam de “project space”. Com que frequência você acha que isso acontece aqui em Berlim?
FL: Dentro das artes existem caminhos para a imitação de habilidade ou reprodução. Não me surpreende que uma galeria comercial surja com uma proposta como essa. Eu acho que o fenômeno mais espalhado em Berlim é que instituições estabelecidas e de prestígio acessariam a cena independente para temporariamente convidá-la, dizendo: “Ei, vamos fazer uma colaboração conosco, a grande e sólida instituição e seu prestígio”.
ME: E seu dinheiro também, né? ((risos))
FL: Sim. Bem, não são todas as instituições que têm dinheiro, mas elas têm mais dinheiro que a cena independente. Trazer os espaços para dentro da instituição e produzir algo juntos, rende às instituições um giro inovador ou progressivo mas, ao mesmo tempo, não prejudica seu procedimento de produção regular. Chama-se Gastspiel, como um convite que coletivos de artes cênicas podem receber para apresentar uma peça…
ME: Este é o nome do convite ou…
FL: Não, “Gastspiel” é o formato.
ME: Uau, tem um nome para o formato?
FL: Sim. E tem também dinheiro, um bom dinheiro envolvido. Porque isso é algo que vem politicamente sendo encorajado. Não tanto em nível municipal mas em nível federal. Você já ouviu falar do Hauptstadtkulturfonds (Fundos Culturais da Capital)? Hauptstadtkulturfonds e Kulturstiftung des Bundes (Fundação Federal Cultural da Alemanha) são duas organizações federais que têm programas onde uma instituição fixa e um ator da cena independente podem colaborar. Então eles podem aplicar para o mesmo fundo juntos e conseguir o financiamento…
ME: São os Fundos de Co-financiamento, certo?
FL: O Kofinanzierungsfonds (Fundos de Co-financiamento) vai nesta direção. E este é um fundo de nível municipal (da cidade de Berlim), e o Kulturstiftung des Bundes (Fundação Federal Cultural da Alemanha) e o Hauptstadtkulturfonds (Fundos Culturais da Capital) são de nível federal, tem mais dinheiro nestes. Mas neles entram também instituições, como um teatro em Munique e um grupo de Berlim, ou um teatro em Dortmund com uma grupo de Heidelberg.
ME: E estes fundos (Fundos Culturais da Capital e Fundação Federal Cultural da Alemanha) são somente para estas parcerias entre instituições e coletivos ou grupos?
FL: Eles têm diferentes programas mas incluem ao menos um módulo dedicado a facilitar ou encorajar este tipo de colaboração. Eu acredito que é preciso fazer uma aplicação conjunta. Para dizer: “Ei, nós já temos uma colaboração”. Por exemplo, eu tenho uma amiga que é parte de um coletivo feminista de performance e ela acaba de ganhar um prêmio da Kulturstiftung des Bundes (Fundação Federal Cultural da Alemanha) para fazer um projeto com um teatro em Munique. Então ela vai se mudar para lá por alguns meses, eles irão ensaiar e vão se apresentar com o conjunto do teatro. Ou seja, ela e seus colegas vão para Munique para trabalhar com o pessoal de lá, apresentam a peça por, sei lá, 3 ou 4 vezes em Munique e depois eles trazem a produção para ser mostrada em Berlim.
ME: Este fundo veio junto com o City Tax 15[7]?
FL: Não, este é um outro fundo. É difícil em Berlim porque tem todos estes diferentes níveis de onde o financimento vem… então, o Kofinanzierungfonds (Fundos de Co-financiamento) é algo que foi criado dentro do orçamento da cultura, veio da organização da Koalition der Freien Szene, porque eles disseram: “Nós precisamos de algo assim”. Então os políticos colocaram isso dentro do orçamento, mas aí têm outros programas com um escopo diferente, significando mais dinheiro e mais tempo para encorajar co-produções similares da cena de arte independente.
ME: De acordo com a Netzwerk Freier Berliner Projekträume und -Initiativen (Rede de Project Spaces Independentes e iniciativas de Berlim), hoje cerca de 50% de todas as exposições em Berlim acontecem nos mais de 150 project spaces espalhados pela cidade. Espaços de arte independentes ou project spaces são reconhecidos como ambientes propícios para a experimentação, pesquisa, troca e construção de uma rede efetiva. Além de preencher lacunas, a cena de arte independente tem um papel ou função dentro do sistema da arte em Berlim, tal como têm as instituições e galerias? Digo, você acha que a cena independente está somente preenchendo lacunas ou ela tem realmente uma proposição, algo diferente a ser considerado?
FL: Quando a gente estava falando sobre esta função de preencher lacunas, soa como uma reação a algo, como se a cena de arte independente não tivesse suas próprias motivações, que ela está apenas respondendo a um fenômeno que já está lá. Mas da forma que eu penso uma lacuna sempre motiva uma ação. Você não está satisfeito com algo, então por isso você vai lá e faz algo. Por que eu resolvi fazer um PhD? Porque ninguém nunca tinha feito isso até agora, eu respondi a uma lacuna. Então, neste sentido, não é negativo dizer: “Você está preenchendo lacunas”. Mas, além disso, acho que a Koalition der Freien Szene tem uma dinâmica própria porque ela é mais do que a soma de suas partes. Então, sim, eles tratam de necessidades e problemas específicos e, neste sentido, tentam preencher lacunas específicas, mas também vai além disso, dar voz ou criar uma voz dos muitos produtores independentes que não mantinham contato ou mesmo que nunca tinham conversado antes. Neste sentido, acho que eles revelaram um papel ou função que ninguém poderia ter realmente ideia do que seria antes deles começarem a conversar uns com os outros. No processo de coletivização, eu acho que eles estão definindo quais são suas reivindicações. No caso da Koalition der Freien Szene, por exemplo, é que seja prestada mais atenção nos produtores individuais, focar na produção artística ao invés de sua apresentação. Porque muito dinheiro vai para os museus, teatros que apresentam arte…e a Koalition der Freien Szene realmente enfatiza fortemente que as pessoas que fazem a arte, os sujeitos vivos na cidade, os corpos que produzem arte precisam de suporte. E este é um tema que não foi suficientemente abordado antes. Digo, ninguém sabe o número exato, mas se estamos olhando para algo entre 40.000 e 50.000 produtores independentes por toda Berlim, trata-se de uma população tão importante que mantém essa imagem de cidade criativa ou hotspot vivo. E aí estes sujeitos precisam ser financiados de uma forma específica. Esta é uma reinvindicação única que a cena independente levanta. E, obviamente, existem instrumentos de financiamento que dão bolsas ou que financiam o espaço de ateliê, mas acho que a imensidade e a importância do financiamento do produtor artístico ainda não ressoou de fato no sistema de financiamento cultural.
ME: Quão importante é a cena de arte independente para artistas e outros trabalhadores da arte, como curadores, pesquisadores, críticos e educadores, especialmente no que diz respeito aos jovens e emergentes?
FL: Eu acho que os project spaces são muito importantes e, em geral, as organizações políticas como a Netzwerk Freier Berliner Projekträume und -Initiativen (Rede de Project Spaces Independentes e iniciativas de Berlim) ou a Koalition der Freien Szene. Elas estão, idealmente, congregando espaços para pessoas encontrarem-se e ancorarem-se, para novos artistas dizerem: “Oh, aparentemente aqui tem uma galera de quem eu posso aprender o que está rolando”. Não é que milhares de artistas estão engajados nestas redes, geralmente é o trabalho de algumas poucas pessoas mas, ao mesmo tempo, muitas pessoas sabem sobre elas. De modo que, elas ocupam espaços representativos para outras pessoas que não têm o tempo ou energia de engajarem-se politicamente, mas o fato de que algo existe para fazer o trabalho, eu acho que satisfaz a cena em geral ou, de certa forma, a pacifica, porque aí você tem uma saída para suas reivindicações políticas a serem tratadas quando você tem algo em mente. E a questão que você levantou sobre curadores é um pouco complicada porque eu acabava de dizer que tem algo como uma tangente entre produção e apresentação. Eu acho que não está claro se os curadores são produtores culturais ou mediadores da apresentação cultural. Então, por exemplo, no processo do City Tax, eles estavam dando bolsas para diferentes áreas artísticas, incluindo música, project spaces, artes visuais, artes cênicas. E dentro das artes visuais, tinha uma controvérsia se as bolsas de artes visuais deveriam ir somente para artistas ou se deveriam ir também para curadores, porque curadores não têm de fato sua própria voz coletiva ou representação na cidade. É um pouco difícil dizer onde eles se encaixam.
ME: Assim como os pesquisadores da arte, certo?
FL: Sim. Essa é outra reivindicação que não teve correspondência material, investir na “fase zero”, refletindo o que artistas realmente querem fazer. Isso está em processo entre ativistas e a administração cultural, o desenho de um “Fundo para Pesquisa Artística”, onde você pode explicitamente aplicar uma ideia ou um conceito que quer estudar e você não será obrigado a produzir nada, como um objeto ou produto; você não precisa prometer que criará algo com a verba. Mas, até o momento, nós não temos isso. [8]
ME: Você vê alguma diferença entre projetos de arte acolhidos por instituições, galerias comerciais e project spaces, em termos de processos e resultados?
FL: Eu não quero essencializar instituições para considerá-las culpadas de serem capazes de produzir este ou aquele tipo de arte, porque isso é estúpido. A mesma coisa com a cena independente. A cena independente não é uma única coisa, certo? Então eles podem fazer projetos super convencionais, chatos, mancos, sem inspiração, sem reflexão, só porque eles são independentes. A maneira como trabalham não necessariamente os fazem críticos. Mas tendo falado sobre estes parâmetros, que faz certas formas de produção artística possíveis e outras não, eu realmente acho que estes parâmetros condicionam a forma como resultados artísticos são produzidos. Então, se você tem um espaço estável para ensaiar, para construir coisas, trabalhar com materiais e com diferentes paisagens sonoras por um longo período de tempo, acho que isso irá afetar o tipo de resultado artístico que irá obter. Por outro lado, se você não tem estes recursos, terá que ser mais criativo na forma de pensar. Entende o que digo? Você tem que aumentar e diminuir o que o projeto pode ser. E aí, digo, eu não amo essa retórica “a falta de tudo faz você criativo”, eu não acho esta uma boa inspiração para a criatividade mas, infelizmente, na vida real, pode ser verdade para alguns artistas. Se você não tem materiais para experimentar, você vai aparecer com “materiais não-materiais” para trabalhar. Ou, se você não tem um lugar para guardar seu equipamento, você vai aprender como trabalhar sem equipamentos. Então, neste sentido, acho que tem um amortecimento ou contextualização de parâmetros que irão afetar o tipo de resultado que é produzido. Mas muitas vezes coisas realmente interessantes acontecem em instituições também. Por exemplo, se você diversifica as pessoas que programam e curam, as pessoas que escrevem peças ou montam espetáculos, você tem a oportunidade de intervir na instituição e ativar algo inesperado que tem este efeito de ser inovador e expansor da mente.
ME: Consolidar a cena de arte independente significa estabelecer um campo onde a produção artística pode acontecer livre das amarras, interesses e distorções institucionais e do mercado da arte, onde a voz do artista não encontra obstáculos. Você concorda com isso? A KFS não usa a palavra “independente”, eles usam a palavra “livre”, certo?
FL: Sim.
ME: E quais são os limites desta liberdade? Não é totalmente livre, nem totalmente independente, como você mesma disse.
FL: Eu acho que só porque sua produção não é orientada pelo mercado, não quer dizer que você é independente ou livre das pressões do mercado. Então, se eu escolho rejeitar algo que, por exemplo, seria vender meu trabalho em uma galeria comercial, isso não me faz totalmente descolado da lógica do mercado que ainda se arrasta sobre o mundo da arte. Ou quando você escolhe fazer uma residência ao invés de tentar vender seu trabalho online, porque a residência te dá segurança para planejar e pagar contas por um determinado período de tempo, eu ainda acho que você atua de alguma forma em relação ao sistema hegemônico existente do capitalismo louco e da globalização. Então, neste sentido, eu acho que mesmo quando você não tem recursos institucionais ou você não tolera a pressão do mercado para produzir aquele tipo de arte porque: “Nós estamos todos trabalhando com plástico agora”. Eu acho que você ainda está de alguma forma ligado a ele. Então tem este tipo de interdependência co-constitutiva da parte dominante do mundo da arte e da parte subversiva, ou sua equivalente contra hegemônica.
ME: E elas respondem uma à outra, certo?
FL: Sim. Então, se você está trabalhando em espaços independentes e com outros trabalhadores autônomos, você tem certas liberdades que outras pessoas não tem. Por exemplo, se eu sou uma cantora de ópera empregada por uma stage opera[9], eu não posso dizer: “Eu não quero cantar esse Mozart bosta”, porque, basicamente, você é contratado para executar algo que foi dedicado a você. Por outro lado, quando você está trabalhando em uma produção independente, você pode escolher dentre suas próprias ideias e pensamentos. Mas aí, ao mesmo tempo, como eu estava dizendo antes, este contexto restringe seu escopo de ação e talvez, de certa forma, mesmo seu escopo de pensamento, quando você não tem nada com quê trabalhar. Então, acho que é esta a liberdade relativa. Mas aí, se você é criativo o suficiente para construir um nicho ou uma zona segura onde você não será julgado pelos resultados, acho que esta é a liberdade que é possível ter. Como em minha bolsa de estudos do PhD, eu era livre, dentro de uma situação um tanto estável, que te coloca numa situação menos precária do que não ter estabilidade em absoluto.
ME: Durante a última década, o trabalho colaborativo entre os circuitos institucional, comercial e independente cresceu bastante em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Como o circuito independente pode tirar vantagem de parcerias com instituições e empresas do mercado da arte, como galerias e feiras?
FL: Tendo publicado um estudo sobre galerias de arte contemporânea em 2013, descobrimos que muitas galerias de arte comerciais não ganham tanto dinheiro. Portanto, mesmo que sejam entidades comerciais, não são todas ricas, sentadas sobre um monte de dinheiro. Então, quando falamos deles facilitando ou dando oportunidades para a cena independente que, presumivelmente, tem ainda menos dinheiro, acho que devemos considerar, em primeiro lugar, que nem todos os atores da cena artística comercial ou do mundo da arte têm muitos meios financeiros. Mas, por exemplo, quando você estava falando sobre feiras de arte, eu sei disso pelo menos em Berlim, porque não temos muitos colecionadores e compradores na cidade, a maioria das galerias de arte de Berlim obtém a maior parte de sua receita através de feiras internacionais. Então, quando estávamos falando sobre instrumentos de facilitação, talvez precisássemos de algo como um fundo para ajudar as galerias a irem às feiras de arte, para tornar as galerias comerciais de arte mais flexíveis para viajar e para mostrar seu trabalho em outros lugares, porque não há muitos ricos que costumam vir a Berlim e comprar arte aqui. E quero dizer como um recurso administrativo (público), que não vem da cena independente, nem de atores da arte comercial. Porque acho que ambos precisariam de algo externo para encorajar sua colaboração. Eu sei que algumas feiras de arte comercial têm uma feira satélite ou algum tipo de pavilhão onde mostram projetos mais inovadores e independentes e têm uma abordagem um pouco mais arriscada para expor algo. Talvez, essa mentalidade possa ser expandida.
ME: Este ano, a SP-Arte, maior feira de arte do Brasil, teve essa programação onde estavam promovendo um circuito específico de arte independente. Então, eles estavam usando seus recursos comerciais ou de mercado para tornar este circuito mais visível. Foi como…
FL: Sim, foi bonito.
ME: Eu diria válido.
FL: E, quer dizer, há um progresso ou desenvolvimento natural das coisas por terem sido independentes e às vezes podem se transformar em algo mais comercial. Então, por exemplo, tivemos uma feira de arte em Berlim, a Art Forum, que foi abolida em 2011. E então não tínhamos nada parecido, e então, eu acho, em 2012 ou 2013 – você pode pesquisar isso – começaram a surgir novos formatos de feiras de arte. Então tinha a ABC – Art Berlin Contemporary[10], uma outra que se chamava Preview[11] e a Berliner Liste[12], mas todas eram projetos do tipo feira de arte em pequena escala, que nunca atraíram a mesma clientela da Art Forum. Mas, então, existe essa ambigüidade também entre o que é a cena de arte comercial e o que é a cena de arte independente. Porque, às vezes, os giros comerciais também podem ser acionados pela cena independente. E às vezes, eu acho, os atores comerciais também convidam posições independentes.
ME: Você acha que a cena artística independente pode preservar sua autonomia para pensar e propor dentro de redes colaborativas com os circuitos institucionais e comerciais?
FL: Quer dizer, preservando a autonomia… mais ou menos, eu diria que existem duas tendências diferentes. Existem partes da cena de arte independente que estão muito ansiosas para estabilizar sua defesa e estabilizar e salvar as conquistas que fizeram até agora. Assim, por exemplo, dentro da Koalition der Freien Szene, esta questão de “devemos nos transformar em uma instituição legal, uma organização, uma associação, uma fundação, um escritório?” está em andamento e algumas pessoas realmente querem isso, porque acreditam que essa estabilidade organizacional fornecerá a base para mudanças políticas de longo prazo. E então, há outras pessoas que estão quase com medo ou pelo menos céticas quanto à institucionalização porque pensam que transformá-la em uma organização vai, basicamente, matá-la. Na verdade, acabei de entrevistar o senador cultural e um dos porta-vozes da Koalition der Freien Szene ontem[13]. E os dois discutiam se o ativismo cultural precisava de apoio, como, se a administração deveria financiar o ativismo dos artistas ou se eles deveriam tentar continuar sem nenhum tipo de apoio financeiro.
ME: Porque eles não são pagos, certo?
FL: Não. Quero dizer, muitos deles trabalham para associações de campos culturais específicos, onde são empregados. Então, por exemplo, o representante das artes visuais da Koalition é diretor de uma organização das artes visuais e também é porta voz da Koalition der Freien Szene. Então, nesse sentido, ele indiretamente é pago por estar na Koalition, mas basicamente o trabalho é voluntário e baseado em voluntários. E então, como preservar essa persistência e esse engajamento constante e contínuo é uma questão muito, muito complicada e está relacionada a se tornar uma organização ou uma associação legal. Mas, eu diria, a cena independente está dividida quanto à necessidade ou não de uma organização para preservar sua posição.
ME: E qual é a diferença entre financiar pesquisas de arte ou espaços de arte e financiar ativismo?
FL: Veja, eu poderia ter perguntado isso ao senador, certo? Isso seria interessante. Eu acho, porque, quero dizer, obviamente, muito dessa defesa também está ligada a interesses muito particulares. Então, é basicamente um lobby para, digamos, a associação de dança dizer: “Ei, os 4.000 dançarinos em Berlim precisam de mais bolsas, eles precisam de mais bolsas de viagem, eles precisam de um espaço de exposição e ensaio que deveria ser co-financiado pela cidade”. Então, eles estão pedindo todos esses subsídios e todos esses meios para continuar seu trabalho, onde, de uma forma legitimamente, a administração da cultura pode perguntar: “Por que devemos gastar dinheiro de impostos com isso? Qual é o maior benefício de financiar dançarinos individuais?” Portanto, acho que a administração cultural é tímida ou cética em financiar esse ativismo ou defesa porque temem que financiariam diretamente políticas particularistas ou movidas por interesses. Então, a resposta do senador, em suma, foi que ele acha que os próprios artistas deveriam se responsabilizar pela continuidade do trabalho, porque se tiverem sucesso, também se beneficiarão com isso. Mas isso é como uma problemática do ovo e da galinha – se você não tem a capacidade ou os recursos para criticar sua situação precária, você vai continuar nesta situação. E, se você é precário, não tem poder, voz e energia para tentar mudar algo em sua situação. Então, é esse discurso do individualismo neoliberal e da responsabilização. Dizer: “Bem, se você não está feliz com o capitalismo, você mesmo tem que se levantar e tentar mudá-lo, mas é impossível.” Essa conversa pára onde há uma mensagem política clara dizendo: “Não vamos financiar o ativismo. De jeito nenhum. Não importa o quê.” E, de certa forma, essa é uma afirmação ideológica, mas que corta a conversa, porque é basicamente sobre isso que os artistas ou ativistas devem construir. Não acho que eles possam mudar ou, pelo menos, não neste governo político, eles não podem mudar essa atitude.
ME: Se eles se tornarem uma associação ou fundação, podem arrecadar fundos com o setor privado.
FL: Exatamente. Porque existem fundações e think-tanks (grupos de reflexão) e talvez eles até possam arrecadar dinheiro sozinhos. Não sei quão bem o crowdfunding funciona nas artes, mas talvez eles pudessem até arrecadar dinheiro de dentro da cena para financiar o que estão fazendo. Se eu fosse um artista individual, veria este coletivo que tenta falar em meu nome, que tenta melhorar as minhas próprias condições de trabalho, seria eu capaz de pagar 5 euros por mês ao seu pote comum? Mas isso também está relacionado ao problema de que eles não têm nenhum mandato representativo fixo, certo? Os porta vozes por muito tempo não foram eleitos diretamente. Então, se agora eles estão introduzindo esse elemento de formalização, eu acho que também estão preocupados em perder parte desse suporte latente que tiveram. Porque agora é como se eles continuassem fazendo enquanto alguém diz para não fazerem, mas se disserem: “Agora estamos nos tornando uma organização legal” ou algo assim, eles também podem perder parte desse apoio difuso.
ME: Quem você acha que tem interesse em financiar a cena artística independente? Ou como você pode justificar a necessidade de orçamento público para financiá-la?
FL: Recentemente, encontrei este manifesto de uma coalizão de artes cênicas em Dresden, que fica na antiga Alemanha Oriental, Saxônia. E eles estavam dando uma elaboração interessante de por que é importante prestar atenção e talvez pagar também ((risos)) para a cena de arte independente. Porque, quero dizer, são tempos de crescente populismo da direita na Alemanha, e tem havido atividades horríveis e desumanas da direita na Alemanha Oriental, agredindo pessoas que não parecem alemãs. E há um partido chamado Alternative für Deutschland, Alternative for Alemanha, que é um partido muito cruel, homofóbico, xenofóbico, racista e muito nacionalista. De modo que, na Alemanha, temos novamente essa tendência horrível e crescente da política nacionalista.
ME: Isso é recente?
FL: Isso é recente, sim. Então, por exemplo, nas eleições nacionais no outono de 2017, eles conseguiram 14% e agora estão no Bundestag alemão (Parlamento da República Federal da Alemanha) e também nos parlamentos regionais. É basicamente um partido populista de direita que está jogando com o medo das pessoas causado pelos imigrantes. E em Dresden, estava dizendo, esta rede de artes cênicas estava tentando relacionar a função ou a singularidade da produção cultural independente com a imaginação de novas formas de sociedades democráticas e novas formas de agência política e cidadania que poderiam contornar essa ascensão do populismo de direita. E, obviamente, há um pouco de perigo de funcionalizar as artes para tornar a democracia melhor mas, como eu disse, não sou totalmente contra a funcionalização da arte. Não acredito na autonomia absoluta da arte. De certa forma, a arte já é mais ou menos política, nesse sentido já tem uma função. Mas, penso eu que, naquele contexto, que é obviamente escolhido, onde esta conexão entre arte e um espaço democrático ou publicitário seria melhor compreendida, as pessoas que desejassem financiar uma produção cultural independente estariam empenhadas em fomentar esta visão democrática. Podem ser fundações políticas, instituições que cuidam da educação política, que cuidam da educação cultural e coisas assim, porque então o financiamento cultural e também o financiamento cultural independente tornam-se uma questão de educação e não apenas de estética. Acho que está dentro daquele setor público que está interessado nas questões do futuro da sociedade e da democracia, ao invés de uma empresa privada. Por que eles financiariam a arte independente? Para parecer legal, sim, e fazer o bem, mas isso é filantropia clássica. Esse, de certa forma, não é um mecanismo sustentável para dar uma premissa básica ou um suporte básico à cena artística independente.
ME: E sobre esse interesse das galerias, por exemplo, dessa galeria que mencionei antes que criou o seu próprio project space? Eles não poderiam simplesmente associá-lo a um project space existente e tirar vantagem disso, por exemplo?
FL: Tenho certeza que eles poderiam.
ME: Desculpe, realmente não me lembro o nome.
FL: Pode ser a galeria Gerd Harry Lybke (Eigen + Art), que é uma galeria muito famosa, ele tem um laboratório… Eu acho que é possível tirar proveito da cena independente com facilidade, se as pessoas forem inteligentes e cruéis o suficiente ((risos)) para fazerem isso. Porque não é uma forma de produção “registrada”, tipo, eles não podem se salvar porque ser flexível e permeável faz parte da identidade, eu acho, da produção cultural independente. Mas, obviamente, eles são mais vulneráveis do que outras posições dentro do sistema de arte. Porque as outras posições têm paredes de concreto ao redor delas e recebem financiamento operacional do orçamento cultural (verba pública) a cada dois anos ou algo parecido. Então, este elemento sistêmico de estar aberto pertence à cena e é por isso que eles sempre têm que se adaptar, e é por isso que eles sempre precisam encontrar refúgio sob o guarda-chuva de alguém e, em seguida, seguir em frente. E eu não acho que isso pode ser superado e, talvez, não deva ser porque, então, ao se transformar em uma organização, você não mantém mais essa flexibilidade inerente.
ME: Qual foi o papel das políticas públicas no desenvolvimento da cena artística independente berlinense nos últimos anos? Li em um de seus artigos que, graças à KFS, o orçamento para os project spaces dobrou. Então, qual a importância desse dinheiro para a cena da arte independente? No Brasil, principalmente no período de 2003 a 2015, as políticas públicas para essa cena foram muito importantes para o seu desenvolvimento, principalmente em algumas capitais como São Paulo.
FL: Então, se entendi bem, em São Paulo isso levou ao crescimento da cena, certo? Ter mais instrumentos de financiamento levou ao desenvolvimento de mais espaços, não é?
ME: Sim.
FL: Em Berlim acho que o discurso se articula um pouco diferente no que toca às muitas das políticas públicas posteriores ao desenvolvimento real que já havia ocorrido. Assim, por exemplo, o fenômeno dos project spaces foi construído e organizado por si só, sem qualquer apoio público. E, eu acho, agora, que somente quando as ramificações gerais do aumento dos aluguéis e do aumento do custo de vida na cidade se tornaram tão urgentes, é que os produtores culturais e esses ativistas da rede voltaram-se para o setor público para dizer: “Ei, precisamos que vocês nos ajudem a manter essas infraestruturas que já criamos”. Quer dizer, obviamente, há também um crescimento e também há muita flutuação e movimento, mas eu diria que alguns instrumentos de financiamento são criados de forma retrospectiva. Para que reajam nas condições já existentes. Então, se estamos falando em aumentar o número de bolsas individuais para artistas, isso fala para a população de artistas que já está aqui. Tipo, com os instrumentos de financiamento que a administração cultural agora está imaginando, eles estão tentando dar às pessoas que já estão aqui melhores condições de trabalho. Nesse sentido, não é tanto uma política orientada para o crescimento, mas é mais focada em sustentar, manter e salvar o que já temos. E, há outros programas com foco em artistas internacionais. Por exemplo, eles acabaram de introduzir uma nova bolsa de estudos literários em língua estrangeira, para que as pessoas que escrevem em polonês, em árabe, em grego, etc., obtenham fundos da administração cultural (públicos). Isso é, obviamente, para atrair berlinenses que não falam alemão, mas, ao mesmo tempo, essas pessoas já estiveram na cidade e essas pessoas já trabalharam aqui sem esse apoio. Então, tudo o que estou dizendo é que, por exemplo, ao contrário de Leipzig, onde eles criaram o fator de localização para fornecer boas condições para os artistas virem para a cidade e trabalharem lá, acho que não precisamos disso em Berlim (não mais). Em Berlim, já existem tantos artistas trabalhando e morando aqui. Eles precisam de condições favoráveis e apoio para continuar fazendo o que já estão fazendo.
ME: Sim, não acho que esses instrumentos de financiamento público em São Paulo atraíram mais artistas para a cidade. Mas acho que com mais dinheiro os espaços de arte independentes têm mais poder de se auto-organizar, crescer e fazer algo coletivamente. E isso não é sobre o artista individual, mas como eles podem se auto-organizar de uma maneira, propondo coisas.
FL: E eu acho que, em Berlim, há uma politização e coletivização que acaba por criar o ímpeto para mais consciência no campo da formulação de políticas, para dizer: “Ei, aparentemente, nós realmente precisamos agir juntos, caso contrário, os artistas irão se mudar, e Berlim simplesmente não será o lugar legal, moderno e criativo que todos nós queremos e precisamos”. Porque não temos grandes indústrias e muito dinheiro entrando na cidade, certo? Por que as pessoas vêm para Berlim? Por ser um lugar legal e fascinante, então, no sentido mais amplo, a cultura independente também funciona como um recurso turístico e é isso que a cena da arte independente está estrategicamente argumentando, eles estão contribuindo para a vibração que deve ser vivenciada pelas pessoas que vêm para a cidade e gastam dinheiro.
ME: Você acha que os turistas vão para a cena artística independente?
FL: Eles podem. E, também, a imagem de quem é turista também está se dissolvendo, certo? Você está aqui há dois meses, vem morando em um Airbnb, você é uma turista?
ME: Mais ou menos.
FL: Você talvez seja uma turista residente. ((risos)) E não quero rotular você, apenas como um exemplo. Existem tantos modos diferentes de habitar a cidade que é difícil capturar quem usa que tipo de infraestrutura. E acho que muitas pessoas na cena de arte independente sabem que não estão atraindo os turistas de fim de semana da RyanAir. Mas eles podem se beneficiar dessa narrativa ou capturar parte dela, e é por isso que eles queriam dinheiro do imposto municipal, para dizer: “Bem, sim, esta também ainda é a vibração e a atmosfera que estamos criando para que as pessoas venham.” E é uma história totalmente diferente se os produtores de arte independentes realmente querem que estranhos completos vejam suas produções, visitem seus espaços, participem de seu discurso de eventos e coisas assim, onde… Não tenho tanta certeza mas, em geral, acho que há uma conexão causal frouxa entre o turismo e a riqueza da cidade e a reivindicação de apoio à artistas independentes.
ME: Então, ouvi dizer que o ZK/U (Zentrum für Kunst und Urbanistik) nasceu como um espaço de arte independente, certo? Você conhece alguma outra instituição que veio da cena de arte independente? E você acha que a cena artística independente tem o potencial de renovar o ambiente institucional, introduzindo novos tipos de instituições?
FL: Então, por exemplo, o Radialsystem, ao lado do (rio) Spree… onde fica a East Side Gallery? Então, mais ao longo da East Gallery em direção à Alexanderplatz, tipo, ao lado do Spree está o Radialsystem, que é um espaço de artes cênicas e ensaios e foi fundado há cerca de 10 anos por Jochen Sandig, que é um ativista cultural de longa data, e ele o transformou em uma instituição. Então essa, agora, é uma instituição bem conceituada e conhecida que faz shows e peças e coisas assim. E é engraçado porque, às vezes, as coisas se profissionalizam tanto que é difícil reconhecê-los como espaços de arte independentes, criados “em casa”. nGbK (Neue Gesellschaft für bildende Kunst na Oranienstraße) ainda é visto como uma instituição independente. Existe há muito tempo como uma instituição definitivamente vinda da cena da arte independente mas também tem uma posição e uma credibilidade dentro de um sistema de arte mais abrangente.
ME: Tem essa lista, no site do Departamento de Cultura, de instituições que recebem financiamento de longo prazo do Estado Federal de Berlim e o ZK/U não está lá.
FL: Bem, quero dizer, é engraçado que você os cite como um exemplo de construção institucional, porque obviamente eles são uma instituição, mas acho que eles próprios consideram o programa de residência… toda a programação que fazem ainda é considerada uma espécie de projeto de arte. Então, sim, eles fornecem espaço para artistas internacionais virem à cidade, mas sim, você está certa, eles não recebem nenhum financiamento do governo, então tentam ganhar seu próprio dinheiro; e eles estão tentando ser auto-sustentáveis a partir do dinheiro que ganham com o programa de residência artística. E, quero dizer, seria interessante pensar se… tipo, o que se qualifica como uma instituição, é para obter financiamento do governo? Muitas instituições, por exemplo o Lettrétage, que é um espaço literário na (rua) Mehringdamm, costumava trabalhar em uma situação muito precária, de conseguir algum financiamento aqui para um projeto e ofereciam uma série de palestras e outras ações do gênero. E agora recebem dinheiro do orçamento cultural (verba pública). Assim, eles terão mais segurança de planejamento. Eles foram reconhecidos, formalmente reconhecidos como uma instituição, mas acho que já eram uma instituição antes disso também. Então, o escopo da definição, quem é uma instituição e o que se qualifica para isso… mas talvez também seja bom que não esteja claro, porque então existem diferentes variações do que uma instituição significa. E isso é difícil porque, de certa forma, não é apenas uma questão de definição, mas de tempo e contexto. Então, há 10, 15 anos, todo o sistema de arte era diferente porque havia muito mais espaço disponível. O espaço era muito mais barato e não haviam tantos artistas na cidade como agora. Quer dizer, eu moro aqui há 7 anos e vejo os preços subindo o tempo todo também. Portanto, a velocidade disso está acelerando. Mas o que estou tentando dizer é que, no início dos anos 2000, quando era muito barato morar em Berlim, talvez houvesse uma possibilidade diferente para os artistas obterem financiamento do governo. Se você estiver organizado agora, não haverá dinheiro para essa auto-organização. Por outro lado, outras organizações que existem desde a década de 1990 conseguiram apoio da cidade para se auto-organizarem, mas agora a cidade tem basicamente essa oferta excedente de ativismo. Então, eles não vão promover ainda mais com o financiamento. Mas eu acho que o que faz uma instituição, o que se qualifica como uma instituição, não é principalmente um financiamento governamental. É mais ser reconhecido na cena. A Koalition der Freien Szene usa o termo Ankerinstitution, “instituição-âncora”. Você é uma âncora onde muitas pessoas podem “pousar” e tentar experimentar e fazer coisas. Tem uma para dança, Uferstudios, um para literatura, Lettrétage, o nGbK, o ZK/U, etc..
ME: Eu realmente acredito que existe essa parte significativa da cena de arte independente que quer ser institucionalizada. E que talvez pudessem fazer essa renovação do circuito institucional.
FL: Sim, eu estava apenas tocando brevemente em diversidade e instituições, certo? Então, por exemplo, em Berlim, o Maxim Gorki Theater tem uma diretora “imigrante”, Shermin Langhoff, estou dizendo isso entre aspas. Então, ter uma mulher “imigrante” liderando uma instituição de teatro de prestígio é percebido por algumas pessoas como uma coisa extraordinária, onde eu fico tipo: “Por que isso deveria ser a exceção e não a regra?!”. Mas, de qualquer forma, a maneira como ela traz questões de identidade pós-colonial e queer para o palco é uma renovação institucional que vem de dentro, porque ela estava trabalhando fora das instituições antes disso. E é aí que essa mudança para o interior da instituição possa talvez mudar instituições consolidadas de dentro, ou seu trabalho será complementado por novas formas de organizações que estão surgindo.
ME: Muito obrigada, Friederike.
NOTAS
[1] https://www.routledge.com/Agonistic-Articulations-in-the-Creative-City-On-New-Actors-and-Activism/Landau/p/book/9781138364639
[2] https://www.routledge.com/Art-and-the-City-Worlding-the-Discussion-through-a-Critical-Artscape/Luger-Ren/p/book/9781138346437
[3] https://www.academia.edu/38530235/Assessing_the_local_embeddedness_dynamics_of_the_Baumwollspinnerei_cultural_quarter_in_Leipzig_introducing_the_POSES_Star_Framework
[4] https://www.springer.com/de/book/9783658149802
[5] https://www.palgrave.com/gp/book/9789811315305
[6] https://www.sternberg-press.com/product/art-production-beyond-the-art-market/
[7] Processo colaborativo de criação de políticas públicas entre a administração cultural de Berlim e a Koalition der Freien Szene ao longo de 2015.
[8] Desde 2020, também por causa da Koalition der Freien Szene, existem bolsas de pesquisa para pesquisa artística: https://kuenstlerischeforschung.berlin/.
[9] Não foi encontrada tradução para este termo. Ao pé da letra, seria ópera de palco. Acredito que a Friederike refere-se à produtoras de óperas, possivelmente que possuem um teatro próprio.
[10] ABC – Art Berlin Contemporary funcionou entre 2008 e 2016.
[11] A Preview funcionou entre 2005 e 2013.
[12] A Berliner Liste foi criada no começo dos anos 2000 e segue ativa.
*A entrevista com Friederike Landau foi realizada pessoalmente, em setembro de 2018 em Berlim/Alemanha (em inglês) e é parte de uma pequena série de entrevistas feitas por Maíra Endo durante a Fase 2 da pesquisa CÓRTEX. As outras entrevistas aguardam a disponibilidade de recursos para transcrição e tradução para o português.