Breve história do circuito comercial em São Paulo

 

O comércio de obras de arte deve ser tão antigo quanto a primeira forma de comércio, que traduzia-se em um sistema de trocas, utilizado pelas primeiras civilizações tribais. Surgiu em algum momento da primeira metade da Idade Antiga (ou antiguidade) – período que se estende desde a invenção da escrita (de 4 000 a.C. a 3 500 a.C.) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) – e só foi substituído pelas moedas de metal no fim deste período, no século VII a.C.. No entanto, o circuito comercial de obras de arte só veio a estabelecer-se de fato, como potência, no Renascimento, em meados do século XV, na Europa.

Na São Paulo do pós-Guerra surgiam novas instituições ligadas à promoção da arte moderna, dentre elas a primeira galeria de arte moderna da cidade, fundada pelo casal de aristocratas napolitanos Anna Maria e Paschoale Fiocca: a Galeria Domus. Criada com o apoio financeiro de Ferdinando Matarazzo (primo de Ciccillo Matarazzo, então presidente-fundador do MAM), teve, nos seus poucos anos de existência, entre 1947 e 1951, papel fundamental no fomento ao colecionismo privado de arte moderna, atuação que influenciou inclusive a constituição do acervo do MAM e os projetos que a instituição desenvolveu no período. A Domus introduziu artistas estrangeiros em seu acervo e exposições, especialmente italianos (Ana Magalhães, 2017)[1].

Entre 1959 e 1964, organizou-se no eixo Rio–São Paulo, um restrito mercado de galerias de arte moderna que somava pouco mais de meia dúzia de estabelecimentos entre as duas cidades. Este pequeno mercado foi responsável pela classificação da produção não acadêmica até então, que serviu de substrato para uma construção da história da pintura moderna brasileira. A primeira proposta neste sentido, de Pietro Maria Bardi, um dos agentes da nova estrutura de comercialização artística, foi editada pela Kosmos, cujo dono era proprietário de uma das galerias de arte paulistas, a Astréia (Maria Lúcia Bueno, 2005)[2].

 

Galerias comerciais de 1958 a 1964[3]

Ano São Paulo Rio de Janeiro
1958 GALERIA SÃO LUÍS

Nina Fiocca e Ernesto Wolff

1959 GALERIA ASTRÉIA

Stefano Gheiman

1960 GALERIA BONINO – Giovana Bonino

PETITE GALERIE – Franco Terranova

1961 ATRIUM

Emy Bonfim

RELEVO

Jean Boghicci

1962 PETITE GALERIE
1963 NOVAS TENDÊNCIAS

Artistas concretos

1964 MIRANTE DAS ARTES – P. M. Bardi

SELARTE – Giuseppe Baccaro

 

À frente do mercado predominavam europeus, fixados em São Paulo e no Rio de Janeiro desde a Segunda Guerra. Alguns, como Pietro Maria Bardi e Giuseppe Baccaro, vieram para trabalhar como técnicos na organização dos museus e das bienais de arte no início dos anos 50. O núcleo de colecionadores responsável por um comércio regular era quase todo de estrangeiros de origem judaica. O quadro só se modificou na virada dos anos 70, com a consolidação do capitalismo no País, quando surgiu a figura do comprador de arte brasileiro (Maria Lúcia Bueno, 2005).

No processo de formação da rede comercial, Maria Lúcia Bueno (2005) aponta dois perfis de galeristas: o primeiro, levado por uma conduta operacional espontânea, estava mais voltado para a valorização do caráter cultural e mundano de sua atividade; o segundo, já orientado por uma estratégia comercial, foi responsável pela criação do padrão de organização que estruturou o primeiro mercado de arte contemporânea brasileira.

No fim da década de 50, a cidade de São Paulo, em processo acelerado de crescimento urbano-industrial, mantinha um cenário artístico atrasado e conservador, se comparado com o da capital do país. Prevalecia um provincianismo entre a burguesia e os segmentos cultos paulistanos que refletia no comércio de arte, cuja evolução ainda estava muito ligada a eventos sociais (Maria Lúcia Bueno, 2005).

A intimidade anterior de alguns com o meio artístico, e a vontade de terem seus nomes ligados a empreendimentos desta ordem, mobilizou a abertura da maior parte das galerias: Stefano Gheiman, da Astréia, era proprietário da Livraria Kosmos e contava com numerosos artistas entre seus clientes; Emy Bonfim, casada com o poeta Paulo Bonfim, tinha como sócio um pintor do grupo Santa Helena, Clóvis Graciano; o marido de Giovana Bonino possuía uma galeria em Buenos Aires e Jean Boghicci era amigo dos artistas do movimento neoconcreto. Entre os empresários, cabe destacar Ernesto Wolff (Pratas Wolff) na galeria São Luís, Tito Zarvos (Zarvos) na galeria Atrium e José Carvalho (A Exposição e Clipper) na Petite Galerie. Se o capital que financiou a rede institucional vinha dos meios de comunicação, no caso das galerias de arte predominavam as empresas ligadas ao comércio (Maria Lúcia Bueno, 2005).

Inexistia uma política de exposições por parte das galerias, assim como não estavam empenhadas em classificar a produção. No mesmo espaço conviviam múltiplas tendências: primitivos, figurativos regionalistas, abstracionistas informais, grupo Santa Helena, concretistas e neoconcretos. De acordo com Stefano Gheiman, o que o levava a selecionar um artista era o nível de popularidade que seu nome havia alcançado. Foi um período em que muitos artistas abandonaram suas atividades paralelas e passaram a viver exclusivamente da venda de obras (Maria Lúcia Bueno, 2005).

De acordo com Maria Lúcia Bueno, as galerias trabalhavam em consignação, com uma comissão de 30%, e não tinham a prática de adquirir trabalhos dos artistas. Os galeristas, em seus testemunhos à autora, revelavam-se empenhados em atender à modesta demanda da alta sociedade local – ainda que seus integrantes não tivessem incorporado o hábito de valorizar a produção em si -, dispondo de um acervo do agrado e com preços acessíveis. A Astréia chegou a contratar como relações públicas uma moça de família tradicional paulista; a Atrium promovia feiras de Natal nos finais de ano para vender obras de artistas conhecidos, em formatos menores e a preços módicos; e Emy Bonfim solicitava aos artistas trabalhos especiais para atender aos caprichos desse consumidor:

“Ciccillo comprava São Francisco, e Alcântara Machado, jacaré. Não teve um artista da época que não tinha pintado jacaré. E aquele, que era o dono do Yásigi, que foi muito pobre, gostava de caranguejo. Caranguejo, jacaré, mas não tinha um, todo mundo fez.” [4]

Em São Paulo, o mercado despontou a partir deste núcleo de galerias que, alheias às práticas capitalistas, lembravam uma versão moderna dos salões da burguesia. Os primeiros marchands paulistas representaram uma resposta espontânea à demanda de consumo por arte brasileira contemporânea, que começou a emergir no final dos anos 50, a partir da consolidação de uma sociedade de mercado. Com um ambiente mais cosmopolita, de capital federal e centro turístico internacional, a ação no Rio de Janeiro foi orientada desde o início para a constituição de um mercado (Maria Lúcia Bueno, 2005).

Em 1959, um leilão de arte beneficente que aconteceu no MAM do Rio de Janeiro, organizado pelo Jornal do Brasil, foi um verdadeiro sucesso de vendas. As obras dos artistas brasileiros, do período de 30/40, alcançaram cifras elevadas, chamando atenção para o potencial de mercado que havia ali. No ano seguinte, Giovanna e Alfredo Bonino inauguraram, em Copacabana, a galeria Bonino, atuante até os anos 1980, a primeira no Rio a trabalhar exclusivamente com obras de arte, dedicada a grandes nomes da pintura brasileira (Maria Lúcia Bueno, 2005).

No mesmo ano, tendo à frente Franco Terranova, a Petite Galerie foi reaberta em Ipanema, agora amparada pelo capital de José Carvalho, proprietário da Ducal[5]. A novidade foi a articulação de uma política de vendas que envolvia um plano de financiamento para a aquisição de obras de arte. Tanto a Bonino, quanto a Petite faziam exposições com artistas de vanguarda, que mesmo sem aceitação comercial, agregavam uma legitimação cultural adquirida entre a crítica e as instituições (Maria Lúcia Bueno, 2005).

Em 1961 foi inaugurada a Galeria Relevo, de Jean Boghicci, em Copacapana. O sistema de coleta da Relevo revelou-se mais lucrativo que o de contratos com os artistas, que foi sendo gradativamente abandonado. Permanecia em vigor uma política de aquisições com os artistas vivos e consagrados, enquanto com os jovens e os poucos conhecidos, operava-se na base de consignação. A partir daí, o mercado de arte brasileiro foi delineando seu perfil (Maria Lúcia Bueno, 2005).

No início dos anos 60, são organizados os primeiros leilões de arte, dois ou três por ano, geralmente como eventos beneficentes. Ao longo da década, as galerias passaram a crescer regularmente em número e a especializarem-se e, ao final do período, já era possível distinguir as que comercializavam arte convencional, das que se dedicavam à arte “moderna” de autor brasileiro, as que vendiam gravuras, dentre outras (José Carlos Durand, 1990)[6].

Um primeiro grande impulso abriu caminho para o desenvolvimento do mercado de arte no Brasil nos anos 70. Após o golpe de 1964, que levou ao poder uma ditadura militar, seguiu-se o período caracterizado como um dos mais favoráveis à acumulação monopolista. Foi uma época em que se aceleraram a concentração de renda, o incremento às exportações e a centralização do sistema financeiro. A estabilidade política, conquistada pelo controle social, estimulou o surgimento de novas possibilidades de consumo pelas camadas privilegiadas, o que deu grande incremento ao campo das artes sob a ótica do mercado (Luiza Prestes, 2015)[7].

Em São Paulo, os leilões multiplicam-se, dispensando o pretexto da benemerência. As galerias expandem-se nos bairros privilegiados, especializando-se ainda mais. Em um levantamento das galerias de arte de São Paulo, feito em 1977, constatou-se que num total de 46 estabelecimentos, 2 haviam sido fundados nos anos 50, 10 nos anos 60 e os demais nos anos 70. Enquanto no mercado de antiguidades os objetos de procedência europeia ainda eram os favoritos, no da pintura rapidamente passaram a prevalecer as telas de artistas brasileiros (José Carlos Durand, 1990).

O incremento e a rotina dos leilões de pintura em São Paulo, durante a década de 70, promoveram uma relativa unificação do mercado, na medida em que esse regime de vendas funciona como instância de formação de cotações ou de hierarquização econômica de artistas e movimentos estéticos. Em um levantamento feito no registro de comércio de São Paulo (Junta Comercial), os leilões de arte passam de 3, em 1967, a 80, em 1979. O valor negociado aumenta de Cr$ 1 milhão para Cr$ 40 milhões (em valores constantes), sendo 1973 o ano mais próspero nesse período, quando o valor negociado aproximou-se de Cr$ 70 milhões (José Carlos Durand, 1990).

Ainda na década de 70, o expressivo desenvolvimento do mercado de arte paulistano, deslocou o centro dinamizador do sistema da arte no Brasil do Rio de Janeiro para São Paulo. A eclosão da chamada Geração 80, que assumia um compromisso forte com a retomada da pintura, também é fruto das novas condições da sociedade brasileira, assim como das exigências da internacionalização acelerada que atualizava a produção local. Na esteira das tendências internacionais, surgiu uma quantidade bastante significativa de jovens artistas que entraram rapidamente no circuito de galerias (Luiza Prestes, 2015).

Dentro desse processo, caracterizou-se, também uma nova expansão do circuito comercial artístico brasileiro, dessa vez em termos nacionais. Diversos estados, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás, Bahia e muitos outros, dinamizaram seus mercados locais e estabeleceram articulações, até então inexistentes, com o eixo Rio-São Paulo (Luiza Prestes, 2015).

A retração do consumo que se fez sentir a partir dos anos 90, alterou significativamente o perfil do mercado interno. A mudança mais significativa foi a redução dos investimentos de risco que a arte de vanguarda envolvia. Passou a ocorrer um enxugamento seletivo, que se evidenciou no fechamento de diversas galerias no eixo Rio-São Paulo, na redução do número de artistas no mercado e na consolidação de um conjunto de produtores, mais restrito e com trabalhos de valores mais altos e mais estáveis (Luiza Prestes, 2015).

A crise econômica e a retração do consumo na economia nacional dos anos 90 desencadeou um novo tipo de atuação, conduzido por alguns galeristas que buscavam adequar-se às novas regras da globalização. Passaram a trabalhar em regime de exclusividade, com um número restrito de artistas e investindo basicamente no seu reconhecimento, negociando com museus, produzindo catálogos e eventos, atuando, declaradamente, no sentido de construir sua inserção nacional e internacional (Luiza Prestes, 2015).

Em meados dos anos 2000, o mercado de arte de São Paulo vive um novo boom, passando por intensas transformações, especialmente depois da criação da SP-Arte, em 2005. A partir daí, dezenas de novas galerias surgiram, enquanto outras ampliaram significativamente seu volume de vendas. Estrategicamente, muitas delas aderiram de forma sistemática às feiras e à organização de mostras de seus artistas em galerias e museus estrangeiros.

Quando os EUA viviam o auge de sua crise financeira, em 2009, e o mercado de arte do Hemisfério Norte entrou em pausa, as galerias brasileiras seguiram ampliando seus negócios. Em 2014, o Brasil mergulhou em sua mais recente crise econômica, minando inclusive o mercado de arte. Porém, de acordo com Fernanda Feitosa[8], diretora da SP-Arte, em 2018 houve uma retomada do crescimento, com o aumento do volume de vendas em relação a 2016 e 2017. A 4ª edição da Pesquisa Setorial Latitude, coordenada pela Dra. Ana Letícia Fialho e lançada em 2015, apurou que 40% das vendas são feitas nas feiras nacionais e internacionais, mesma proporção apontada na edição anterior da pesquisa.

Já o relatório da Artprice[9], lançado em 2016, apontou que a arte latino-americana é um segmento do mercado global de alto potencial que, impulsionado pela crescente demanda internacional, passou inclusive a fazer parte do calendário de leilões. De acordo com mesmo relatório, em maio de 2016, o leilão Phillips anunciou um aumento de 305% no volume de negócios envolvendo a arte latino-americana desde 2009. Os brasileiros que destacaram-se neste cenário foram Hélio Oiticica, que teve sua obra exposta em uma grande retrospectiva no Carnegie Museum entre 2016 e 2017; Cildo Meireles, primeiro artista brasileiro a exibir uma retrospectiva na Tate em 2008; e Mira Schendel, que bateu um novo recorde de $970.000 por um trabalho sem título em 2016, no leilão Phillips.

Ao longo da última década, a arte contemporânea brasileira ampliou consideravelmente sua presença nos circuitos internacionais e valorizou como nunca antes na história. A intensificação das viagens internacionais pela classe média e a democratização do acesso à informação, especialmente através das redes sociais, estimulou o surgimento de novos e jovens colecionadores. O mapeamento realizado por esta pesquisa levantou que hoje são cerca de 75 galerias de arte atuando na cidade de São Paulo.

 

NOTAS

[1] Em “Da galeria ao museu”, publicado em abril de 2017, edição 34 da revista Select. Disponível em https://www.select.art.br/da-galeria-ao-museu/.

[2] No artigo “O mercado de galerias e o comércio de arte moderna: São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1950-1960”, de Maria Lúcia Bueno, publicado em 2005.

[3] Tabela extraída do artigo “O mercado de galerias e o comércio de arte moderna: São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1950-1960”, de Maria Lúcia Bueno, publicado em 2005.

[4] Emy Bonfim em depoimento a Maria Lúcia Bueno.

[5] Rede de lojas de roupas masculinas de muito sucesso durante as décadas de 50 e 60.

[6] Em “Mercado de Arte e Campo Artístico em São Paulo (1947-1980)”. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_13/rbcs13_06.htm.

[7] No texto “Quer conhecer o mercado de arte?”, publicado no website do Projeto Arte Reflexões, de Maria Amelia Bulhões, disponível em https://www.ufrgs.br/artereflexoes/site/2015/12/05/quer-conhecer-o-mercado-de-arte/.

[8] Em documento endereçado à imprensa, disponível em https://www.sp-arte.com/app/uploads/2018/04/sparte2018-release-balanco.pdf.

[9] Disponível em https://www.artprice.com/artprice-reports/the-art-market-in-2016/art-from-around-the-world.